Cecília Meireles, assim se pronuncia:
Grande é a diferença entre o turista e o viajante.
O primeiro é uma criatura feliz, que parte por este
mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o
guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os
dentes: seu destino é caminhar pela superfície
das coisas, como do mundo, com a curiosidade
suficiente para passar de um ponto a outro,
olhando o que lhe apontam, comprando o que lhe
agrada, expedindo muitos postais, tudo com uma
agradável fluidez, sem apego nem compromisso,
uma vez que já sabe, por experiência, que há
sempre uma paisagem por detrás da outra, e o dia
seguinte lhe dará tantas surpresas quanto a
véspera.
O viajante é criatura menos feliz, de movimentos
mais vagarosos, todo enredado em afetos,
querendo morar em cada coisa, descer à origem
de tudo, amar loucamente cada aspecto do
caminho, desde as pedras mais toscas às mais
sublimadas almas do passado, do presente e até
do futuro – um futuro que ele nem conhecerá.
O turista murmura como pode o idioma do lugar
que atravessa, e considera-se inteligente e
venturoso se consegue ser entendido numa loja,
numa rua, num hotel.
O viajante dá para descobrir semelhanças e
diferenças de linguagem, perfura dicionários,
procura raízes, descobre um mundo histórico,
filosófico, religioso e poético em palavras
aparentemente banais; entra em livrarias, em
bibliotecas, compra alfarrábios, deslumbra-se a
mirar aqueles foscos papéis e leve, para tomar um
apontamento, mais tempo que o turista em
percorrer uma cidade inteira.
Quando lhe dizem que há sol, que o dia é belo,
que é preciso sair do hotel, caminha como
empurrado, cheio de saudade daqueles alfabetos,
daqueles misteriosos jogos de consoantes,
daquelas fantasmagorias das declinações. Portase
diante de um monumento, e começa outra vez a
descobrir coisas: é um pedaço de coluna, é uma
porta que esteve noutro lugar, é uma estátua cuja
família anda dispersa pelo mundo, é o desenho de
uma janela, é a cabeça de um anjo que lhe conta
sua existência, são as figuras que saem dos
quadros e vêm conversar sobre as relações entre
a vida e a pintura, é uma pedra que o arrebata
para o seu abismo interior e o cativa entre suas
coloridas paredes transparentes.
O turista já andou léguas, já gastou a sola dos
sapatos e todos os rolos da máquina – e o
viajante continua ali, aprisionado, inerme, sem
máquina, sem prospectos, sem lápis, só com os
seus olhos, a sua memória, o seu amor
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